No primeiro dia que saí contigo
disseste que o teu trabalho era estranho.
Mais nada. Todavia, eu sentia
a pele a rasgar-se como trapos
de cada vez que me tocavas com a mão.
E os teus olhos pareciam-me punhais
a fazer-me doer os meus.
Daí para a frente foi sempre a mesma coisa:
tu orgulhavas-te da tua arte,
mais subtil e directo em cada dia
e eu nunca percebia nada.
Mas agora sei. Já conheço o teu ofício:
Atirador de facas. A mais certeira
atiraste-ma ao coração.
Todos precisamos que nos amem.
Porém, alguns infelizes,
não sabemos viver para outra coisa.
Há meses que vivo rodeada
por uma substância negra e pegajosa
que invadiu a minha casa. As paredes,
o chão, as janelas e os móveis,
a comida, os livros e a roupa,
o teclado do computador, as plantas,
o telefone… Está tudo impregnado
com esta pez escura, a mesma que respiro
e que me mata pouco a pouco.
Dizem que os venturosos e os néscios
chamam melancolia a esta porcaria
que apodrece o coração e asfixia a alma.
Podes vir ver-me quando quiseres,
sabes onde estou. Meus companheiros
são muitos, mas eu sinto-me só.
Há um inválido que nunca se pôde
atirar à piscina milagrosa.
Há um pobre leproso com o corpo
numa enorme chaga sempre aberta.
Há um que tem peste. E um tuberculoso.
E um outro com febres. E outro ainda
que nunca pôde curar os olhos cegos com fel.
E eu, mais incurável que todos
depois que me arrancaste o coração
e o puseste à venda na feira.
Amália Bautista
Bocas OnLine